Yohana Junker

On Art, Religion, and the Poetics of Resistance

Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], 2018

“Não importa quão alienados nos tornemos, continuaremos a produzir padrões que espelham o mundo natural” Trecho da obra de Victoria Vesna, ‘Mind and Body Shifting: From Networks to Nanosystems,’ 2002.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.


As obras de Flora Assumpção aqui reunidas propõem um atravessamento da membrana frágil que separa o natural do artifício. Em Cativa [A Natureza da Natureza], a instalação complexa que se estende por todo espaço da galeria re-desenha e re-apresenta padrões encontrados na natureza, nos convidando a ruminar sobre o caráter da intervenção humana nela. Será que integramos e sustentamos os ambientes que habitamos ou também os desestabilizamos, dominamos e des-naturamos? Por meio da manipulação de materiais do cotidiano—produzidos industrialmente e modificados manualmente—Flora nos confronta com tais interrogações.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

 

Num mundo tão fantástico quanto exuberante que a artista nos proporciona, a percepção do espaço, da arte e da natureza se emaranham. O material—que em outras instâncias seria considerado inerte e não-responsivo—passa a incorporar vitalidade, complexidade e dinamismo, como os seres imaginários de Borges. À medida em que seguimos o percurso destes materiais pela galeria, passamos a esquadrinhar um labirinto de possibilidades no qual a relação com a matéria se caracteriza mais por movimento, fluxo, oscilação e volubilidade do que por forma, propriedade, permanência e estabilidade, como sugerem Deleuze e Guattari.1 A obra de Flora também nos remete ao pensamento de Elizabeth Grosz, Donna Haraway e Jane Bennet: todas sugerem que objetos naturais e artificiais estão sempre em estado de alteração, emaranhados numa vibrante teia de relações e colaborações pegajosas, voláteis.2

Foto da exposição Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

 

Na simulação híbrida que consubstancia a natureza, o cotidiano, a tecnologia, o industrializado, a maleabilidade e a rigidez, as obras confundem a expectativa do observador, enevoando os limites entre forma e função, familiar e fantástico, o lúdico e o crítico. As estruturas de folhagens artificiais que demarcam a galeria, por exemplo, podem ser descobertas como trepadeiras, plantas rasteiras, tentáculos animais, uma cascata ou cachoeira camufladas que abalam o espaço como ondas, maremotos. Sua investigação artística traz experimentos que delineiam e articulam uma cartografia da proximidade. É no entrelaçar das formas, das repetições, dos materiais, das cores, das texturas e dos corpos (sejam eles animais fantásticos ou humanos) que um convite nos é estendido para que tateemos e re-imaginemos as possibilidades, mutações e limites da interação humana com a natureza.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

 

Tal convite-provocação desloca o animal humano da posição de centralidade criativa: somos tão fundamentalmente nativos quanto recolhidos da natureza—tão fabricantes quanto fabricados por ela. Para Bachelard, é no tocar dessas formas e ramagens que podemos compreender a realidade: cada gesto poético capaz de penetrar a membrana da matéria encontra, do outro lado, a beleza e o “cerne do ser.”3 Na lírica de Bachelard, a matéria possui dois valores: um de elevar e outro de aprofundar a imaginação humana. Isso se desdobra num movimento vagaroso, doloroso e potente como articula Jacques Bousquet: “Uma nova imagem custa à humanidade o mesmo labor que uma nova característica custa à uma planta.”4 No labor humano da imagem, Flora introduz a dimensão do trabalho manual em sua instalação—frequentemente ligado à atividade doméstica e à arte popular—ressignificando e reposicionando a criação artesanal num circuito artístico de fine arts. Esta manobra permite o desalinhavar de práticas artísticas tidas como dominantes, costurando uma relação complexa entre o centro e a periferia que se dá na superfície de cada Hydra.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

 

Nesta vasta instalação, as dobras desencadeiam inúmeras reações: elas esticam, encolhem, alargam, misturam, desdobram, conferem densidade e flexibilidade não somente à matéria, como também à memoria e à imaginação.5 Em cada um dos milhares de vincos presentes na obra, a periferia encontra o centro, as extremidades tocam o eixo central e a energia produzida pela tração das mãos no plástico, no feltro, no papel, encharcam esses materiais de potencialidade. As sobreposições das dobras da artista capturam as contrações do tempo, as contingências da história e evidenciam a advertência de Latour— de que não há pura cultura, tecnologia, ou pura natureza, tudo flui e contamina as diversas dimensões desta labiríntica rede.6 Ao perambular por esses espaços da galeria, talvez delineemos uma praxis transformadora e criativa às urgências de nossos tempos de modo a nos reintegrar tanto à natureza, quanto à produção— sustentável—do artifício. E, para que isto aconteça, sigamos Hydra—que vem para limpar a névoa que encobre nossas percepções. 7

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

Foto da exposição de Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza], Galeria Janete Costa, 2018. Fotografia: Flávio Lamenha.

 

1. Deleuze e Guattari, A Thousand Plateaux, (1980) (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003).
2. Jane Bennet, Vibrant Matter: A Political Ecology of Things, 2010; Elizabeth Grosz, Architecture from the Outside: Essays on Virtual and Real Space, 2001; Donna Haraway, Staying With the Trouble, 2016.
3. Gaston Bachelard, L’eau et les Rêves, (Paris: José Corti, 1942), 1-3.
4. Ibid.
5. Como articulam Michel Serres, Atlas (Paris: Éditions Julliard, 1994), 47-8 e Gilles Deleuze, The Fold: Leibniz and the Baroque, trad. Tom Conley (Londres: Athlone Press, 1993), 3.
6. Bruno Latour, Politics of Nature (1999) (Cambridge: Harvard University Press, 2004).
7. Stéphane Mallarmé, Divagations, citada por Bachelard em L’eau et les rêves (Paris, José Corti, 1942), 1.


Yohana Junker, doutoranda em história da arte e ciências da religião na Graduate Theological Union, Berkeley, California. Pesquisa arte contemporânea nas Américas, com ênfase na convergência entre arte, ecologia, espiritualidade e produção artística indígena.


Flora Assumpção, Cativa [A natureza da natureza]. 2018
Instalação. 1500m2
Plásticos e tecidos diversos.
Galeria Janete Costa. Recife - PE - Brasil

Instalação site-specific / work in progress composta pelas obras:
Rastejantes [ou Cascata]. 2015-2018
Plásticos translúcidos coloridos e grampos. Dimensões variáveis.
Hydra. 2018
Tapetes de feltro sintético e tecidos diversos coloridos. Dimensões variáveis.
Teia [Ananse Ntontan]. 2018
Linha prateada, pregos e escada em espiral. Dimensões variáveis.
Mboitatás I e II (versão II). 2009-2018
Grafite sobre parede. Dimensões variáveis.
Serpente Beija-Flor, das Criaturas Híbridas. 2014-2018. 
Impressão digital. 2,8 x 7,55 m

https://floraassumpcao.blogspot.com.br/2018/03/cativa-natureza-da-natureza-2018.html


Textos críticos de Yohana Junker e Icaro Ferraz Vidal Junior

Fotografia e produção de Flávio Lamenha

Agradecimentos: Flávio Lamenha, Yohana Junker, Icaro Ferraz Vidal Junior, Fabianne L'Amour, Luciene Torres, Marcela Dias, Carlito Person e equipe do educativo da Galeria Janete Costa, Lucas da DAC LTDA e Edelandia da Avil.